Ser professor de
filosofia no Brasil anda sendo perigoso. Nos últimos tempos a nossa situação
confirma o refrão do clássico do cancioneiro popular no país: “não está sendo
fácil viver assim/você está grudado em mim (...)”, porém o que está “grudado”
na gente é o patrulhamento, a paranóia e superestimação das nossas capacidades
de mexer com as mentes de nossos educandos e educandas.
Pela perspectiva
do atual presidente e de muitos de seus asseclas, somos responsáveis por tudo o
que aconteceu, acontece e que está por vir nesta terra em que “se plantando
tudo dá”: Protestos? Foi doutrinação que aconteceu nas escolas. Alto custo de
vida? Foi o pessoal de filosofia que “fez a cabeça” de quem é proprietário de
supermercados e afins para que se comprometam com a conspiração comunista
planetária. Pandemia de covid-19? Arma biológica que, secretamente, vai
inocular o “gayzismo esquerdopata abortista venezuelano orgiástico” nas
pessoas, garantindo o fim da tradicional família brasileira.
Parece que não é
uma opção cogitar que as pessoas protestam porque estão insatisfeitas com a
(des)ordem vigente ou que há aumento do custo de vida porque o mercado é regido
por interesses baseados na lei da oferta e da demanda (a partir da exploração
de quem efetivamente trabalha) ou que a pandemia revela o total desinteresse em
garantir condições de vida adequadas para população, inclusive condições de
trabalho, o que contribuiu para a propagação do vírus.
Tudo é culpa de
professoras e professores de filosofia que tramaram e continuam tramando contra
a liberdade de jovens e das famílias dessa juventude de decidirem o que é
melhor para suas crias. Qualquer indicação de leitura, de filmes, seriados,
canções ou mesmo uma troca de ideias sobre o mundo, sobre a vida é logo tratada
como doutrinação. A pergunta que pode aparecer logo em seguida é: por que algo
tão inútil como a filosofia é tão perseguida? Por que parece tão perigosa? Se é
inútil, como pode ser perigosa? Ousaria escrever que parece uma paródia do
clássico texto do Brecht “Perguntas de um trabalhador que lê”: Tantas
perguntas, tantas questões.
Movido pela
adrenalina filosófica, inspirado pelo clássico Pokemon: “Schopenhauer, eu
escolho você!” para desenvolver uma chave de leitura sobre essa situação.
Schopenhauer
circula com popularidade pelo mundo dos memes, sempre representado por uma
mescla de amargura, sarcasmo e ironia, mas, há uma parte das ideias dele que
podem promover, não sem antes desestabilizar um pouco nossa autoestima, uma
ampliação da nossa potencialidade de viver, de existir com mais sentido ou, por
assim dizer, com mais autenticidade. E tudo isso a partir do caráter.
Talvez o uso da
palavra caráter ative o sinal de alerta de moralidade, afinal, caráter
geralmente vem acompanhado de discursos de normatização do comportamento, de
juízos de valor que definem certo e errado, bem e mal. Acalme seu coração e
cérebro, não tem relação direta e profunda como pode parecer. Segure a atenção
e não saia da tela do aplicativo que vamos começar.
Caráter, no
pensamento de Schopenhauer, refere-se à natureza individual e particular da
vontade. Todo mundo tem vontades que se manifestam quase que a todo momento.
Essas vontades nos levam a comer, beber, dormir, defecar, urinar. Também nos
levam a participar de festas, encontros aleatórios, disputar vagas de emprego e
promoções. As vontades nos levam a lugares os mais diversos, a tomar desde
atitudes louváveis como atravessar um idoso para o outro lado da avenida conde
da boa vista (importante via aqui de Recife) até “jogar pala” para conquistar o
pretendente do amigo (!) Uma questão: Para quê tudo isso?
Tanto as vontades
relativas às necessidades básicas como as de convívio social e as atitudes
execráveis; até a pergunta sobre a finalidade disso tudo, está no conjunto do
que Schops nominou como caráter, sendo que ele identificou três tipos de
caráter, os seguintes: caráter da espécie, caráter individual e caráter
adquirido.
SOBRE OS TIPOS DE
CARÁTER
O caráter da
espécie é o que nos lembra que pertencemos ao mundo natural, ao conjunto do que
seria uma vontade macrocósmica e por pertencermos a ela, não podemos escapar de
seus desígnios, ou seja, temos que nos alimentar, dormir, buscamos a manutenção
da nossa vida e também empreendemos verdadeiras odisseias para transar com
alguém.
Já o caráter
individual é só um pouquinho mais complexo: refere-se ao que poderia ser
denominado como o “reino humano”. Neste âmbito estariam os sentimentos, as
emoções, aquilo que nos toma e nos leva a agir: ódio, medo, alegria, esperança.
Tenha em mente que estes são individuais, cada uma de nós expressa e sente de
maneira própria e específica, sendo impossível prever ou definir leis sobre
como agiremos ou como as outras pessoas agirão inclusive em relação a nós.
Aqui, Schopenhauer trata da confiança, mas que foge dos objetivos desse texto,
fica para um próximo.
Chegamos ao
terceiro tipo, o caráter adquirido. No pensamento de Schopenhauer, esse caráter
refere-se ao saber sobre si, o tão mencionado autoconhecimento. Esse saber
sobre si é o que nos distinguiria da generalizada e uniforme massa humana.
Pense da seguinte maneira: todos que compõe a chamada humanidade apresentam
semelhanças físicas e sofrem os clamores da espécie, ou seja, todo mundo está
sujeito a sentir fome, sede etc. Nessa mesma linha de raciocínio, somos
basicamente movidos e movidas por desejos e buscas de realizações que,
praticamente, não se diferenciam.
O caráter
adquirido seria a consciência da vontade que se tem, das vontades primárias e a
autonomia para tomar atitudes no turbilhão composto pelas vontades da espécie e
pelas vontades individuais. Segue um trecho contundente sobre esse ponto, que
foi escrito pelo próprio Schops:
dentro de si [uma
pessoa] encontra disposições para todas as diferentes aspirações e habilidades
humanas: contudo, os diferentes graus destas na própria individualidade não se
tornam claros sem o concurso da experiência. [...] Pois, assim como nosso
caminho físico sobre a terra não passa de uma linha, em vez de uma superfície,
assim também, na vida, caso queiramos alcançar e possuir uma coisa, temos de
renunciar e abandonar à esquerda e à direita inumeráveis outras. Se não podemos
nos decidir a fazer isso, mas, igual a crianças no parque de diversões,
estendemos a mão a tudo o que excita e aparece à nossa frente, então esta é a
tentativa perversa para transformar a linha do nosso caminho numa superfície
(SCHOPENHAUER, 2005, p. 393)
Seríamos, então,
para utilizar a citação acima, como crianças que, uma vez no parque, querem
tudo o que é oferecido, tudo o que está lá. Por essa perspectiva, o velho
Schopenhauer joga na nossa cara que não somos tão individuais como queremos
acreditar ou nos fazem acreditar. Perturbador, não é?
E O ATAQUE AO
PENSAMENTO FILOSÓFICO TEM O QUÊ COM ISSO?
Vou iniciar essa
parte do texto com um trecho da canção “Comida”, do grupo de rock tupiniquim
“Titãs”:
(...)
A gente não quer
só comida
A gente quer
comida
Diversão e arte
(...)
Há várias
análises dessa canção e caso você nunca tenha ouvido na vida, pare a leitura
desse texto, acesse o aplicativo de música presente no seu telefone e escute. O
texto não sairá daqui.
Pronto, letra
completa e melodia muito boas essa canção nos apresenta e agora que já estamos
ambientados, esse trecho pode servir para construir uma relação com a ideia de
Schopenhauer de que somente a partir do caráter adquirido poderemos deixar de
fazer parte da uniformidade humana.
Quando Bolsonaro,
no ano passado, mais especificamente em 26 de abril, publicou em seu perfil no
Twitter que
“A função do
governo é respeitar o dinheiro do contribuinte, ensinando para os jovens a
leitura, escrita e a fazer conta e depois um ofício que gere renda para a
pessoa e bem-estar para a família, que melhore a sociedade em sua volta.”
pode-se entender
que para ele o básico da educação é suficiente. Não é novidade, já é lugar
comum que as humanidades não são aceitas pelo presidente, mas vamos avançar e
ver como Schopenhauer pode nos oferecer uma chave de leitura interessante sobre
isso tudo.
Somos uma massa
uniforme, sendo que essa uniformidade se apresenta e nos rege desde as vontades
atreladas a espécie até o que fazemos na vida social. Vivemos a partir de uma
repetida busca pela satisfação da fome, da sede, do sono e afins; também
pensamos, queremos o que é comum, o que é banal, o que é do cotidiano.
É nessa situação
que o pensamento filosófico é potencialmente transformador. A partir do momento
que as vontades da espécie são pensadas e o automatismo da vida em sociedade é
desnaturalizado, podemos viver com maior autoconhecimento, uma vez que
entraremos em contato, de forma consciente, com as nossas inclinações, com as
nossas habilidades, com a potência do que podemos pensar, fazer e aspirar para
nós.
O
autoconhecimento e a desnaturalização impedem que as pessoas se tornem
seguidoras de outras, asseclas acéfalos que aceitam a ordem (desordem?) social
e os sofrimentos que as desigualdades engendram como se fossem parte de um plano
maior com objetivo de uma eternidade que não se sabe existente (ou não
existente), mas que essa promessa permite a perpetuação de misérias
inomináveis.
No entendimento
de Schopenhauer, existem ídolos os mais diversos. Fazendo uma transposição para
a contemporaneidade, ídolos esportivos, ídolos morais, ídolos do mundo do
entretenimento, ídolos políticos. Como resultado da falta de caráter adquirido
no que se refere ao autoconhecimento, como não entramos em contato com nossas
inclinações, paixões, habilidades, inapetências, não realizamos os esforços
exigidos nesse processo.
É como se, por
não encararmos o que temos em nós, em termos de potencialidades e fragilidades,
vontades e desejos, entregássemos tudo para esses ídolos porque esses ídolos
encarnariam os méritos que não temos. Não teríamos do que nos orgulhar, por
assim dizer, então, por isso, nos orgulhamos dos ídolos por tudo que eles
aparentam ser ou ter (no que se refere às qualidades).
No caso
específico dos ídolos políticos, o Bolsonaro sendo um deles (mas pode ser
qualquer um), ele se enquadraria no esquema teórico do Schopenhauer posto que é
uma representação dessa uniformidade humana, do que é o humano comum, que vive
em função da satisfação das necessidades básicas, encarnando o comportamento em
série e, por assim dizer, “de manada”.
Anatemizar a
filosofia é o caminho para garantir que mais pessoas sejam mantidas inertes no
âmbito do caráter da espécie e do caráter individual, essa manutenção permite a
perpetuação da idolatria, o sacrifício da própria vida, inclusive, agradecendo
por esse messias existir e estar entre nós.
É, assim
entendemos porque a filosofia é tão inútil e paradoxalmente perigosa.
TEXTO PUBLICADO EM
https://medium.com/@projeto.mimesis/in%C3%BAtil-e-perigosa-a-filosofia-sob-ataque-b2515056bdba - 15.abril.2020
Referências:
HORKHEIMER, Max.
Eclipse da razão. Tradução de Carlos Henrique Pissardo. São Paulo: Editora
Unesp, 2015b.
LAZARINI, Lucas.
A atualidade de Schopenhauer, de Max Horkheimer. Voluntas: Revista
Internacional de Filosofia, [S.l.], v. 9, n. 2, p. 190-208, dez. 2018. ISSN
2179-3786. Disponível em:
<https://periodicos.ufsm.br/voluntas/article/view/36126>. Acesso em: 02
abr. 2020.
SAFATLE,
Vladimir. O circuito dos afetos: corpos políticos, desamparo e o fim do
indivíduo. 2ª ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2018.
SCHOPENHAUER,
Arthur. O mundo como vontade e como representação. Tomo I. Tradução,
apresentação, notas e índices de Jair Barboza. São Paulo: Editora UNESP, 2005.
SCHOPENHAUER,
Arthur. Aforismos para a sabedoria de vida. Tradução Jair Barboza. 2ª ed. São
Paulo: Martins Fontes, 2006.

0 comentários:
Postar um comentário