Há
uma grande dificuldade (provavelmente da maior parte das pessoas) de
pensar algumas questões no Brasil e uma delas é a persistência do
racismo. Já se sabe que raças humanas não existem mas ainda se
hierarquiza seres humanos a partir de sua aparência, de suas ideias
e crenças (ou não crenças). O corpo humano é usado como
referencial para definir quem é “mais humano”, quem é
considerado mais capacitado, quem tem direito de viver e quem não
tem. Pensando “nesta terra descoberta por Cabral” (para mencionar
a música do Juca Chaves – se você não conhece, procure conhecer
pois ele deu importante contribuição para a história da república
brasileira), esses direitos todos estão praticamente garantidos em
sua plenitude se, entre outros aspectos, a pessoa não tiver um teor
elevado de melanina.
Talvez
você tenha pensado: “pronto, começou o ‘mimimi”, a
vitimização, vai escrever sobre o quanto é difícil ser
afrodescendente (porque nem de negro mais se pode chamar), o quanto
sofreu e sofre por ter a pele escura e o cabelo crespo!” CALMA,
JOVEM! Eu escrevo e peço que não abandone esta leitura, ela
provavelmente pode te ajudar a compreender inclusive essa reação
que muitas pessoas têm quando se menciona essa palavrinha com “r”.
Para tanto, vamos pensar a partir de conceitos sociológicos, afinal
esta é uma página que objetiva divulgar a possibilidade de se
pensar o mundo a partir de conceitos que muitas vezes não conhecemos
mas que podem nos ajudar a nos entender e também ao mundo em que
estamos inseridos e inseridas.
ALGUNS
CONCEITOS
O
termo raça diz respeito às qualidades que são atribuídas a
indivíduos e grupos tendo como fundamento as características
físicas, como, por exemplo, a cor da pele. Na história da
humanidade sempre aconteceram essas distinções entre grupos
sociais, mas o fundamento aparentemente científico só foi aplicado
pelos fins do século XVIII e começo do século XIX. Essa aplicação
pseudocientífica foi crucial para a dominação imperialista de
nações como Grã-Bretanha, França e outras.
Racismo,
conceitualmente, passa a ser a predominância das características
físicas para compreensão das diferenças entre os indivíduos e
grupos. Em termos práticos seria algo como afirmar que uma pessoa
corre mais rápido ou tem dificuldades de aprendizado porque ela é
negra ou branca. É atribuir ao que é físico algo que pode ser
desenvolvido com investimentos, prática e disciplina. Um exemplo
dessa perspectiva é quando se afirma que os quenianos se destacam em
corridas porque “é do povo africano essa capacidade de correr”.
Ou ainda: “parece uma coisa que faz com que negros se destaquem no
futebol (Brasil) e no basquete (EUA).
Em
ambas as situações, vale pensar se quenianos se destacam na
corrida, pessoas negras se destacam no futebol e no basquete porque
os seus corpos são “melhores preparados” para essas atividades
ou se não temos aqui situações em que o custo para realizar tais
atividades é bem menor do que estudar para ser físico nuclear,
engenheiro espacial ou mesmo médica/o. Seria importante também ter
em mente que, em muitas situações, usufruir de educação básica
de qualidade já é uma grande possibilidade. Assim, não há nada de
físico, biologicamente definido, geneticamente preparado que
explique, sem controvérsias, o destaque de algumas pessoas, de
alguns grupos em relação a outros.
Os
grupos humanos são diferentes entre si porque indivíduos são
diferentes entre si. O que se relaciona diretamente com o racismo é
a desigualdade. A desigualdade é oriunda da atribuição de
hierarquias ao que é diferente. Pensando em termos práticos: olhos
azuis são diferentes de olhos castanhos e o juízo de fato pararia
por aí se não fossem estabelecidas posições de inferioridade e
superioridade: olhos azuis são mais bonitos do que olhos castanhos
ou vice-versa. Agora pense nas peles humanas. Peles com mais melanina
são diferentes de peles com menos melanina. Até aí, nenhum
problema, nada de novo sob o sol.
Pessoas
com peles escuras são inferiores em relação a pessoas com peles
claras – estabelece-se, assim, a hierarquia. Pessoas de pele escura
são inferiores e, por isso, não têm direito a usarem os mesmos
banheiros que pessoas de pele clara e, como historicamente temos
exemplos, devem ser reduzidas à condição de escravizadas para,
assim, purgarem o pecado ancestral definido no livro sacralizado de
uma religião ocidental originada no Oriente Médio.
Esse
estabelecimento de um lugar social é o que pode ser conceituado como
status. O lugar social de um
indivíduo em uma sociedade pode ser atribuído ou pode ser
adquirido. O primeiro caso é quando o indivíduo
é colocado naquela posição, ele não escolheu estar ali ou mesmo
se esforçou para isso. Exemplo simples: você é filho/a de seu pai,
neto/a de seus avós, primo/a de seus primos e não escolheu nenhuma
dessas pessoas para fazer parte de sua vida e nem elas a você. No
momento de seu nascimento, a você foi atribuída essa posição e a
essas pessoas também.
Ampliemos:
quando você se depara com pessoas e acredita que essas pessoas podem
representar um perigo para a sua segurança, você ATRIBUI um lugar
social, você atribui um status
a essa pessoa. O que te faz atribuir essa posição pode variar. Pode
ser a roupa, a “cara” do indivíduo, o “jeito” (algo difícil
de conceituar) mas, muitas vezes, essa “cara”, esse “jeito”
tem a ver com a pele e a quantidade de melanina que ela carrega.
Um
pouco mais: frases como “você
não tem cara de médica”, “quem te vê nem diz que sabe tanto”
ou, ainda, o conjunto de reações diante de pessoas que dirigem
determinado modelo de carro ou moram em determinado bairro e são
abordadas com alguma truculência ao som de perguntas como: “de
quem é esse carro?”, “tá circulando por aqui pois tá querendo
roubar?” são exemplos de status
atribuídos aos indivíduos e que, nessas situações citadas, tem a
ver com cor da pele.
Talvez
você diga: mas acontece com qualquer pessoa, pessoas negras não são
privilegiadas porque essas situações acontecem com pessoas pobres,
mal vestidas independente da cor da pele. CORRETO. Mas considere que
as chances de acontecer são maiores com pessoas negras porque há
uma atribuição de lugar de inferioridade a pessoas afrodescendentes
de maneira quase imediata.
E
O RACISMO ÀS AVESSAS?
É comum encontrar
e até se falar que sofreu de racismo por ser branco/a. Geralmente
esse raciocínio vem acompanhado de seu primo, a heterofobia. Não
será abordada aqui a questão da heterofobia, mas o desenvolvimento
das ideias é análoga, pode ser usada como ponto de partida.
Comecemos
por entender que o racismo na sociedade brasileira não é uma
questão de pessoas racistas, mas sim de uma estrutura racista. Para
entendermos melhor, vamos partir do conceito de estrutura social, que
diz
respeito à forma como uma sociedade se organiza por
meio de relações
complexas e com
alguma continuidade no tempo e espaço. A estrutura social brasileira
está assentada historicamente na atribuição de posições de
inferioridade não só a pessoas negras mas também às expressões
culturais, religiosas afrodescendentes.
Exemplo:
se alguém afirma ser membro de candomblé, umbanda ou participar de
qualquer manifestação de religiosidade de matriz africana, a chance
de se ouvir um “vixi” é muito grande. Quando uma pessoa negra
não raspa o cabelo ou, no caso feminino, não alisa para conseguir o
penteado mais parecido com a da mocinha da novela (que geralmente é
de pele clara) pode-se ouvir comentários do tipo: “que revolta é
essa?”, “por que você não alisa o cabelo pra ficar bonita?”.
Lembra do que foi escrito acima sobre status
atribuído? Pronto, não se atribui beleza à aparência de pessoas
negras ou legitimidade, direito de existir às expressões religiosas
de matriz africana.
Isso
quer dizer que há uma situação de inferioridade ao
que se relaciona à população negra, é a estrutura da sociedade
que é racista e que está baseada em ideias que compõem as formas
coletivas de pensar, de sentir e de agir. No mercado de trabalho,
muitas vezes, um/a candidato/a não é aceito/a em vaga disputada
porque é negra a sua pele, ainda que não seja explicitada essa
razão. Pense nas vezes em que você julgou alguém incapaz de fazer
alguma coisa. Essa pessoa era negra? Se sim, questione-se a razão
dessa atribuição de lugar de inferioridade.
Não
há, conceitualmente, racismo contra pessoas brancas porque o mundo
ocidental não inferioriza pessoas porque elas têm a pele clara. Há
pouquíssimas piadas de pessoas brancas, os cabelos crespos são
colocados como fantasias para o carnaval enquanto os cabelos lisos
têm grande valor de venda. São esses elementos cotidianos que
definem o racismo como estrutural e não como caso isolado, de alguém
que discrimina e ofende. A discriminação e a ofensa são parte da
formação da identidade nacional. Mas, você pode afirmar que existe
racismo contra brancos/as, entretanto, sociologicamente, o conceito
não dá conta da realidade social.
Como
se pode combater esse mal? Uma possibilidade é a ação conjunta
entre educação e legalidade. Educando as pessoas para a diversidade
e punindo os crimes motivados por questões “raciais”. Mas a
primeira atitude contra esse racismo estrutural que compõe a
sociedade brasileira deve ser aceitar o/a racista que há em cada
um/a de nós e quando alguém nos acusar de racismo, antes de
respondermos com “eu não sou racista”, “como posso ser racista
se tenho amigos negros, se namorei pessoas negras?”, pergunte: Por
que você está me dizendo que sou racista? Dê
oportunidade a si mesmo/a de descobrir a ignorância que há em si e
que, na maior parte das vezes, não queremos reconhecer que existe.


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