A peça “Esperando Godot”
que faz parte do movimento artístico cultural conhecido como Teatro do Absurdo,
do dramaturgo Samuel Beckett, apresenta uma abordagem da condição humana que
pode ser comparada metaforicamente com a busca constante da adequação ao padrão
de beleza socialmente colocado como ideal. Na obra, os dois personagens
protagonistas esperam diariamente pela chegada de Godot, que é sempre anunciada
para o dia seguinte. A chegada de Godot nunca se concretiza, chegando-se a
duvidar da sua existência, mas, mesmo assim, todos continuam esperando por ele.
Ironiza-se, dessa forma, a esperança de uma suposta “salvação” que, adiada
eternamente, nunca chega.
Assim funciona a busca pelo atual
padrão de beleza: a indústria cultural relaciona beleza à felicidade e
transforma o padrão do que se entende como belo em mercadoria passível de ser
consumida através da aquisição de mercadorias que prometem sempre a
concretização desse padrão. Esse padrão, no entanto, nunca pode ser atingido,
pois a insatisfação emocional crônica gerada por essa busca é estimulada de
forma contínua através dos mecanismos mercadológicos que fabricam a ideia do
consumo como necessidade. Sendo o consumo permanente um mecanismo fundamental
para atender a necessidade mais básica do capitalismo, ou seja, a acumulação de
capital através do lucro, a beleza esperada nunca chega, tornando o indivíduo
um consumidor modelo.
Ao
perceber essa questão sociologicamente, o corpo passa a ser um veículo para a representação
das diversas formas de sociabilidade, refletindo, portanto, a cultura e os
valores nos quais a vida social se insere. O corpo é, portanto, a materialização da
relação que o indíviduo constrói com a sociedade na qual ele está inserido, na medida em que assume uma dimensão
para além dos aspectos biológicos que o formam, passando a ser uma construção
social. Como construção social, a formação da consciência acerca do corpo,
assim como as formas coletivas de pensar e sentir sobre ele, são históricas,
porque mudam no tempo e no espaço.
Considerando
o contexto atual das sociedades ocidentais industrializadas, existe uma relação
profunda entre a produção cultural e a formação das subjetividades que,
potencializada pelo capitalismo avançado, transforma a representação da imagem
do corpo em uma mercadoria, que como todas as outras mercadorias, deve ser
vendida. Essa relação se dá a partir das redes sociais, uma vez que a
veiculação de imagens assumiu para o Capitalismo uma importância tal que
determinou a redução das relações humanas, inclusive a própria expressão das
identidades, à imagem que é veiculada pelas mídias.
Uma
vez que o corpo-imagem é a forma mais evidente de expressão das identidades,
ele também passa a ser entendido dentro da lógica mercantil de consumo de
aparências. Assim, junto ao conceito de “Indústria Cultural”, a caracterização
da “Sociedade do Espetáculo” feita por Guy Debord evidencia a estruturação das relações humanas a
partir da imagem espetacularizada em que a publicidade leva ao extremo a
fetichização das mercadorias disponíveis para serem consumidas, o corpo sendo
uma delas.
A construção da sociedade capitalista como
Sociedade do Espetáculo se dá, então, para Debord, pela produção cotidiana de
espetáculos aliados com a estrutura produtiva capitalista. Entendido, pois,
nessa perspectiva, o espetáculo formulado por Debord funciona como um mecanismo
do sistema para garantir a acumulação de capital, de forma condizente com o
processo histórico concreto de consolidação do Capitalismo e da sociedade
burguesa.
No entanto, avaliando essa questão para além do que
Debord pôde prever a partir de seu contexto histórico, a midiatização, mediada
pelas redes sociais – Facebook, Instagram, Twitter, etc - da sociedade atingiu uma complexidade tal que
o corpo não apenas assimila a realidade espetacularizada e consome os produtos
estéticos, mas se tranforma ele mesmo na própria mercadoria, desenvolvendo-se
agora a ideia do corpo-mercadoria no lugar do corpo-imagem.
Com efeito, procura-se “vender” uma autoimagem
considerada ideal pela sociedade, através da espetacularização de um corpo que
remeta ao que o capital entende como sucesso, o que implica a adequação do
corpo a essa ideia, tornando-o mais “comercializável”, como qualquer outra mercadoria.
É nesse sentido que se dá a padronização dos corpos considerados belos, haja
vista que não se veicula, ou veicula-se muito pouco, a imagem de pessoas fora
do padrão de corpo considerado comercializável ocupando posições sociais que,
na sociedade capitalista, estão relacionadas ao sucesso, como posições de
liderança e postos profissionais de destaque.
Como consequência, constrói-se uma esteriotipação
que desconsidera as subjetividades de quem foge ao padrão e, a partir daí, molda
os corpos dos indivíduos. Exemplo da espetacularização dessas representações
sociais padronizadas do corpo e que tem relações com a política, é a matéria da
revista Veja, como se observa na imagem, na qual se constata a construção de um
discurso que impõe um padrão não apenas estético, mas também comportamental e
político, sobre o corpo feminino.
O que a espetacularização faz é chamar atenção de
forma exuberante sobre aquilo que o mercado quer que seja consumido, para
tanto, passa o verniz da beleza, do
prestígio e do status, criando uma relação de culto a imagem que é sustentada
pelo caráter teatral dos produtos midiáticos. É o que se observa com os perfis
fit e de blogueiras no Instagram, que expõem de forma glamourizada e idealizada
– ou seja, espetacularizada – ações banais, como refeições e exercícios
físicos. A importância está no performático: naquilo que vale mais “likes”,
mais seguidores, mais “matches”.
Essa questão é representada pela série distópica
Black Mirror, no episódio “Nosedive”, em que as interações sociais e a exibição
fetichizada das experiências cotidianas fazem parte de um sistema de avaliação
instantânea que gera uma nota para cada pessoa, baseada no número de curtidas e
interações virtuais que ela possui, que determinam o prestígio social e até
mesmo o acesso a serviços e a determinados espaços físicos. Apesar de a série
ser uma representação da realidade, ao refletir sobre os recursos de avaliação
que atribuem notas aos indivíduos nos aplicativos de uso cotidiano como o uber
e o AirBnB, assim como
nossos esforços constantes para conseguir um bom desempenho neles, percebe-se
que a realidade proposta pela série não está tão distante da realidade de fato.
Na sociedade pós-moderna o corpo assume o valor
simbólico de uma mercadoria fetichizada, espetacularizado e facebooquializado,
exposto para ser consumido. E no Império da existência como produto para ser
exibido e consumido, o poder espetacular aparece como um desdobramento da
expansão comercial inerente ao Capitalismo, disseminando em todas as esferas da
vida social as condições para garantir a manutenção da sociedade burguesa. Ao
direcionar o olhar sociológico para essa temática, é possível a desconstrução
desses padrões culturalmente construídos atráves da desnaturalização da ideia
de beleza, na medida em que se entende o processo social que possibilita a sua
existência.
===================================
Thais Almeida, graduanda de História e monitora do curso Pense Fora da Caixa - Filosofia e Sociologia para o ENEM


0 comentários:
Postar um comentário