A imagem acima pode ser lida para além da ideia de sociedade do espetáculo: mostra como os sites de pornografia educam as formas de praticar sexo em nossa sociedade. ——— Pornografia pode ser pensada a partir do conceito de fato social, definido por Émile Durkheim como formas coletivas de pensar, de sentir e de agir. Tem a ver com a manutenção da ordem social, com a reprodução de determinadas visões de mundo. ——— O pornô, assim pensado, “educaria” quem assiste no q tange a como realizar o ato sexual. Alguém pode reagir dizendo q não. É quando chamo atenção para o fato de q uma forma de aprendizado se dá pelo espelhamento, ou seja, copiando a maneira como algo é feito. —— Pense agora em adolescentes cheios de hormônios e especificamente nos garotos , educados para se mostrarem, podendo tocar nas suas “partes de menino” e a tratarem as meninas (futuras mulheres) como objetos para sua satisfação, tal qual nos pornôs q sempre terminam quando o homem ejacula. —— No caso do homem adulto, esses filmes reafirmam o local de aparente supremacia e dominação q lhes são inculcados. Para as mulheres fica o modelo de gemidos, de posições, de depilação para atender ao desejo do patriarcado, sendo este entendido como um conjunto de ideias q legitima a posição social de superioridade do masculino. —— Há estudos q indicam q pornografia produz mais sensação de prazer q o ato sexual, o q levaria quem assiste a buscar cada vez intensidade, o q deságua em gêneros de pornô q simulam (simulam ou infligem?) estupros - coletivos, inclusive. (Não teriam servido de exemplo/inspiração para o caso do estupro coletivo noticiado no Rio de Janeiro?). —— Ainda segundo pesquisa, o termo mais procurado em sites pornôs no Brasil é “novinha”, seguido de “homem negro” ou “negão”. O q isso parece revelar: pedofilização e objetificação do corpo de pessoas negras. —— Mais do q uma questão de moral, pornografia é questão de saúde pública, de saúde mental.
Pensando em uma proposta do tipo
“assista antes de votar”, o episódio da série Black Mirror “The Waldo Moment”
estaria, sem dúvidas no topo da lista de sugestões. O olhar distópico que a série
propõe lançar sobre a realidade é sempre útil para refletir sobre processos
sociais. No episódio em questão, Waldo materializa a ideia de um político herói
que, em oposição a figura “sem graça” dos políticos tradicionais, cria um
discurso de fácil assimilação que consiste basicamente em atacar de forma
agressiva e barulhenta a oposição para em seguida apresentar esse discurso como
“humor” e/ou “excesso de sinceridade”. Assim, os ataques misóginos, racistas,
homofóbicos, xenófobos e que envolvam todo tipo de discriminação que se possa
imaginar, são vendidos como “piadas”, ou como “coragem de falar o que se
pensa”. Na série, Waldo não apresenta propostas para nada – é um personagem
político “fake”, cuja candidatura visa apenas fins mercadológicos e de entretenimento.
No entanto,o discursode Waldo acabado sendo “comprado” por pessoas
que, paradoxalmente, se dizem contra políticos tradicionais, que seriam
apresentariam uma imagem “fake” de si mesmos para conseguir votos.A partir da figura de Waldo e da situação
contraditória gerada por ele, a série britânica faz uma crítica ao processo de estetização da política, que cria
personagens políticos cujas falas e ações são meramente performáticas, ou seja,
que criam espetáculos sociais no lugar alternativas políticas reais.
A política é um fenômeno social,
e como tal, muda à medida que mudam as sociedades. Na era da espetacularização
de basicamente todos os aspectos da vida humana, a estetização da política
criticada por Black Mirror se aproxima muito mais da realidade do que de uma
distopia. O conceito de “ridículo político”, analisado por Marcia Tiburi,
aborda a política a partir da publicitarização que reduziu sua práxis à
representação vazia de conteúdo, em que a imagem produzida para ser consumida
como mercadoria importa muito mais do que a coerência do discurso produzido.
Sobre esse conceito, Tiburi (2017, p. 10) escreve que
As
cenas do que chamei de Ridículo Político fazem parte da vida pública e
correspondem a uma estetização curiosa da política (ou de uma certa forma de
fazer política que se tornou tendencial) que vive da manipulação
da
imagem e da produção de inverdades de todo tipo. O que chamei de “esteticamente
correto” é o disfarce do ridículo, o esforço para estar na linha do padrão
estético, que invade as relações em nível micro e macropolítico. O
esteticamente correto se dá em cumplicidade com toda uma cultura de naturalização
do ridículo na qual estamos submersos.
Não é difícil
perceber as semelhanças entre o conceito filosófico de “Ridículo político” e as
ações de Bolsonaro, assim como as do personagem com a personalidade do deputado,
que ainda consegue inovar em um aspecto: aparece com soluções simplistas e
imediatistas para problemas que ganham rápida repercurssão social, como o
problema da segurança pública – ainda que seja, pra dizer o mínimo, incoerente
para alguém que passou anos no Congresso Nacional sem apresentar nenhuma
proposta viável para todos esses problemas, de repende possuir todas as
soluções que irão magicamente resolvê-los. Diante disso tudo, resta entender: o
que motiva a escolha Bolsonaro?
A popularidade da figura política
de Bolsonaro é baseada em dois aspectos principais: na ostentação de uma fala
abertamente favorável a ações violentas, como tortura e assassinato político, e
na defesa da repressão absoluta de tudo aquilo que seja desviante do modelo de
cidadão branco, heteronormativo, cristão e possuidor de poder aquisitivo. O
apelo discursivo de Bolsonaro, portanto, é de cunho moralista. Essa é uma
característica importante de se destacar, pois envolve um processo de negação
como forma de afirmação. A contradição é apenas aparente, pois, ao negar algo
ou alguém, implicitamente aponta-se para si mesmo como o contrário do que foi
negado, e é por isso que o apontamento negativo se dá sempre contra o outro, e
nunca para si mesmo. Dessa forma, ao apontar o outro como imoral, aponta-se
para si mesmo como exemplo de moralidade, pois, nesse raciocínio, a autoridade
acusatória só pode ser conferida a quem ocupa a posição “moralmente desejável”,
o que leva a percepção de que a primeira motivação para o discurso moralista é
o ego. Uma personalidade egocêntrica tende, por sua vez, à rejeição radical de
tudo aquilo que diverge de si, seja essa divergência de aspecto ideológico,
comportamental, religioso, cultural, etc, o que caracteriza uma postura
autoritária.
Como já disse Jessé Sousa, a classe média brasileira, que se autoproclama a representante da
moralidade e dos chamados “cidadãos de bem”, usa essa moralidade de maneira convenientemente
seletiva fazendo “vista grossa” diante da corrupção dos setores representantes
do status quo brasileiro, quando não
defendendo essa corrupção seletiva abertamente (quem não se lembra dos cartazes
equiparando sonegação de impostos à legítima defesa?). Para o sociólogo, essa
legitimação seletiva da corrupção é um reflexo do ódio de classe que esses
setores sociais ostentam, ódio esse que está ligado à mentalidade escravista
que ainda permanece na sociedade brasileira, até então reprimida e agora
exposta viceralmente nas ações e nos discursos, potencialmente ou abertamente,
fascistas.
Aqui se volta ao processo de
formação da socidade brasileira, marcado por mais permanências do que rupturas
com a lógica colonial, e que perpetua até hoje os aspectos mais violentos das
“mentalidades Casa Grande”: o desejo de segregação social da “ralé brasileira”
(retornando mais uma vez à Jessé Souza para tomar emprestado o conceito criado
por ele) e a extensão dessa segregação às estruturas do Estado e do sistema
jurídico.
Nesse sentido, é válida a
percepção de que as ideologias, entendidas como o conjunto de ideias
socialmente construídas que estruturam as formas coletivas de percepção e
apreensão do mundo, influenciam a produção de sentimentos – sendo importante
ter em mente a diferença entre sentimento e emoção: sentimentos são produtos
culturais e estão associados às formas como fomos ensinados a reagir diante das
diversas situações que se apresentam no meio coletivo, como ciúme e ódio,
enquanto que as emoções existem naturalmente como reações biológicas a
situações externas, como se dá quando experimentamos o medo diante de um perigo.
Assim, observa-se que predomina no cenário político atual o uso do discurso de
ódio como um instrumento de construção
do sentimento de ódio, sentimento este que está ligado ao desejo de
reprimir e perseguir a oposição, e que é legitimado ideologicamente a partir do
discurso da moralidade que normalmente acompanha o dicurso de ódio.
Ao pensar sociologicamente sobre
esse processo, é fundamental a compreensão de que as mentalidades e os
comportamentos de indivíduos que vivem em sociedade são permeados por relações
de poder e que essas relações incluem o poder de criminalizar indivíduos. Ou
seja, nas sociedades, a definição de criminalidade não existe naturalmente, mas
perpassa o poder de atribuição de status.
Status, em sociologia, significa a condição socialmente construída a que o
indivíduo se encontra submetido, ou a posição social que ele ocupa, tendo sido
esse conceito desenvolvido por Max Weber para analisar como pertencimento
social, prestígio e poder se estruturam na sociedade. Assim, a atribuição do
status social de criminoso é dada por quem detém, na sociedade, poder. Como
consequência, a construção dessa condição social pode servir a interesses
específicos dos grupos que detêm o poder para a obtenção de quaisquer objetivos
que sejam desejáveis a esses grupos, inclusive objetivos políticos.
É por esse motivo que o
apontamento da incoerência, da falta de qualquer tipo de consistência e até
mesmo de mentiras na fala de Bolsonaro
não surte nenhum efeito sobre a imensa maioria dos seus eleitores: porque não
se trata de política em si, mas de sentimentos. Quando se mostra que o deputado
representa muito mais da velha política do que qualquer outra coisa, que passou
anos usufruindo do salário e dos benefícios de deputado sem praticamente fazer
nada no Congresso, que não apresenta projeto de governo nenhum e que se nega a
debater sobre qualquer coisa – deixando óbvio seu despreparo para ocupar não só
a presidência da república, mas qualquer cargo político – o que se observa é
que tudo isso simplesmente pouco importa para quem apoia o que ele representa. Pouco
importa o fato de que Bolsonaro esteve no PP, partido que ocupa o topo da Lava
Jato em número de políticos investigados, ou o fato de que ele fale em “bandidos
de estimação” quando recebeu dinheiro de propina da JBS através do partido e
ainda tenha tentado justificar o ato indagando “qual partido que não recebe
proprina?” e tentou uma aliança política
com o PR, partido cujo líder foi condenado pelo envolvimento com o mensalão e
que tem vários deputados investigados pela Lava-Jato.
Os fatos não importam porque o
que se busca no discurso de ódio não é a verdade, mas a legitimação da
violência de quem já tinha o desejo por ela reprimido em si. O que a fala e a
própria figura de Bolsonaro representam é a legitimação de todos os racismos,
homofobias, machismos, facismos e ódio de classe que, se antes não se mostravam
porque “pegava mal”, agora encontram o cenário construído para se mostrar sem o
mínimo pudor. A recusa a qualquer pensamento baseado na lógica ou até mesmo no
bom senso mais básico se dá porque o discurso de ódio não atinge a
racionalidade civilizacional, mas sim os afetos políticos do indivíduo, afetos
esses que estão ligados ao desejo de aniquilamento de tudo aquilo que é em
algum aspecto desviante do que se considera moralmente aceitável (mesmo quando
essa moral é questionável, afinal de contas não estamos tratando de coerência
entre ação e discurso, mas de sentimentos reprimidos). Assim, para que o
discurso de ódio seja eficiente, é necessário que se evite ao máximo possível o
confrontamento com qualquer argumentação minimamente racional.
Um dos grandes problemas dessa
lógica discursiva é que, em regimes políticos autoritários, como os que são
elogiosamente defendidos por Bolsonaro, o status social de criminoso pode ser
atribuído arbitrariamente à qualquer um que questione de alguma maneira ou que
represente de alguma forma um obstáculo para a efetivação dos interesses do
poder instituído. Historicamente, regimes autoritários transformam todo
discurso de questionamento da ordem em crime e os indivíduos que sustentam
esses discursos perdem seu nome, passando a ser chamados de “terroristas”,
“bandidos” ou “subversivos”, em um processo de apagamento de qualquer
identidade subjetiva para o enquadramento em uma categoria política. A partir
daí o que ocorre é o uso sistemático da violência como política de Estado,
através da racionalização do processo de repressão e aniquilamento dos chamados
“inimigos do Estado”.
Foi esse o processo colocado em
prática pela Ditadura Militar brasileira, implantada a partir de 1964. A partir
da criação de um poderoso aparato de coleta de informação, o governo militar
desenvolveu uma logística de matar pessoas que se mostrou uma das mais
eficientes. O funcionamento da tortura e do assassinato como política de Estado
envolveu a captação de recursos financeiros fornecidos em boa parte por
empresários, a sistematização de métodos de desaparecimentos de mortos
políticos, a partir da queima de corpos, da retirada da arcada dentária e de
digitais, impossibilitando a identificação, e o desenvolvimento de técnicas de
tortura que permitissem infligir a maior dor física e a maior agonia
psicológica possível sem matar, de modo a aniquilar qualquer capacidade de
resistência da oposição. Ao contrário do que se pensa, a violência da ditadura
não se direcionou apenas aos grupos que optaram por recorrer à resistência
armada, mas à qualquer indivíduo a quem fosse de interesse do governo militar
atribuir o status de inimigo do Estado. Sobretudo durante o processo de
colonização - que promoveu a exploração de recursos naturais por empresas
privadas em territórios ainda pouco povoados - fez-se necessário o controle e a
eliminação de grupos sociais locais das áreas de interesse (áreas para
empreendimentos de agropecuária, mineração e corte de madeira). Lilia Moritz
Schwarcz (2015, p.463) escreve sobre o “Relatório Figueiredo”, o mais
importante documento que relata a ação da ditadura sobre tribos indígenas, que
O resultado é estarrecedor: matanças de
tribos inteiras, torturas e toda a sorte de crueldades foram cometidas contra indígenas
brasileiros por proprietários de terra e por agentes do Estado. Figueiredo fez
um trabalho de apuração notável. Incluiu relatos de dezenas de testemunhas,
apresentou centenas de documentos e identificou cada uma das violações que
encontrou: assassinatos, prostituição de índias, sevícias, trabalho escravo,
apropriação e desvio de recursos do patrimônio indígena. Seu relatório denuncia
– e comprova – a existência de caçadas humanas com metralhadoras e dinamite
atirada de aviões, inoculações propositais de varíola em populações indígenas
isoladas e doações de açúcar misturado a estricnina
Além das populações indígenas,
existe uma vasta documentação que comprova a mesma lógica operacional de
tortura e genocídio contra sem-terras, mineradores e comunidades ribeirinhas.
Vale ressaltar que esses eram indivíduos que não possuíam quaisquer ligações
com comunistas ou com grupos de oposição esquerdistas. Esses exemplos demostram
a contradição da lógica de “perseguição do inimigo” presente no discurso de
Bolsonaro: em sistemas autoritários, quem define quem é o inimigo? O que se
observa, portanto, é a construção da
ideia de um inimigo que serve aos interesses de quem detém poder.
Partindo desse raciocíonio,
levanta-se uma outra questão: em regimes democráticos, discursos pró-ditadura devem
ser aceitos, em nome da liberdade de expressão? A liberdade deve ser limitada
em um regime que a tem como seu fundamento mais básico? Não existe solução
simplista nos processos democráticos, e a resposta para esse impasse não foge a
essa regra: sim, as liberdades devem ter limitações em regimes democráticos, e
essa resposta não pode ter a pretensão de apresentar uma solução simples para
esse problema complexo. Nenhum sistema que tem como fundamento estrutural a
garantia de liberdades pode admitir uma liberdade absoluta, pois que o uso
dessa liberdade pode, em algum momento, ameaçar a própria democracia e o seu
fundamento básico. Em outras palavras, entende-se que a ideia de uma liberdade
ilimitada pode – e em algum momento vai, a história não permite discordar – gerar situações em que as liberdades
democráticas podem ameaçar a existência da própria democracia e das liberdades
instituídas por ela. As liberdades, pois, devem existir até o limite em que não
ameacem a Lei-Maior que estabelece os princípios que permitem a democracia
existir enquanto tal.
Nessa perspectiva, pensando a partir
das teorias política e ética de Immanuel Kant, filosófo iluminista, percebe-se
que, para ele, na organização da vida em sociedade, o indivíduo tem a sua
liberdade limitada pela ação reguladora e pelo aparato jurídico do Estado,
exercida através das suas instituições, e seria dentro dessas condições que a
liberdade individual deveria ser exercida. Kant aponta que cada indivíduo só
pode exercer a liberdade que reconhece igualmente a todos os outros, de modo
que essa prática é ela mesma uma solução para as contradições da vida em
sociedade. Consequentemente, a liberdade é limitada pelas leis civis
instituídas a partir do contrato social, não se confundindo, entretanto, com a
obediência alienada e inquestionável, mas sim com a possibilidade de reflexão
crítica, inclusive da crítica sobre o próprio Estado, desde que em conformidade
com o poder normativo democrático. Agir segundo esse princípio seria, do ponto
de vista da ética kantiana, uma ação por dever, e este dever ético estaria, por
sua vez, fundamentado na garantia da dignidade dos seres racionais que, fazendo
uso de sua liberdade, instituem leis a si mesmos.
Percebe-se, a
partir daí, que uma outra característica da democracia é a legitimidade do conflito de ideias, isto é, a aceitação da falta de
consenso entre grupos que convivem em sociedade. A democracia, portanto,
incorpora a negociação dos impasses
sociais, de maneira que nenhum grupo possa impor a todos os outros seus
desejos, mas que, a partir do diálogo e da negociação, se possa abdicar de
algumas das vontades particulares em prol de projetos de sociedade que
contemplem a coletividade social. Seria a aplicação de uma lógica próxima da
Justa Medida aristotélica do “nem tanto, nem tão pouco”, uma vez que os
diversos grupos de indivíduos nem poderiam impor totalmente seus desejos aos
demais, nem precisariam abrir mão de absolutamente todos esses desejos em
função de outros. Ao observar, portanto, a fala de Bolsonaro de que “minha
proposta é defender direitos da maioria e não da minoria. (...) as minorias têm
que se calar, se curvar à maioria”, percebe-se que ela reflete uma postura
absolutamente antidemocrática. Porque, então, se diz que Bolsonaro defende
ideias fascistas? Porque regimes fascistas não admitem a discordância de pensamentos. Nesses regimes, é imposto um conjunto
de ideias e um projeto de sociedade que passam a valer como verdades
incontestáveis, sendo qualquer divergência reprimida a partir do uso, ou da
ameaça de uso, da violência.
Com base nisso
tudo, a conclusão é a de que em qualquer sociedade que se pretenda
verdadeiramente democrática, não pode haver espaço para o discurso
pró-ditadura, para o discurso que fala abertamente em quebra das regras
democráticas, em “metralhar” a oposição política e em reprimir minorias
sociais. A escolha ou a recusa à Bolsonaro, portanto, vai muito além da recusa
ou escolha de um partido político, trata-se do modelo de sociedade que as consciências
individuais desejam. Resta apenas a sua reflexão, leitor que chegou até o final
desse texto, sobre qual lado sua consciência está e, muito mais do que isso:
qual o preço que você está disposto a pagar pela sua escolha – ou pela sua
recusa?
===============================
Thais Almeida, graduanda de História e monitora do curso Pense Fora da Caixa - Filosofia e Sociologia para o ENEM
O objetivo deste texto não é tratar do candidato Bolsonaro
ou de suas propostas. Também não é criticar as falas dele que circulam aos
quatro ventos e redes sociais. Não se achará um dedo em riste apontando as
inadequações de sua proposta de governo caso seja eleito. Isso tudo está em
muitos lugares – muitos. Não será necessária sua reprodução aqui. Este texto
objetiva pensar sobre as razões de Bolsonaro e suas propostas receberem apoio,
ou seja, tentar-se-á, por meios das Filosofias, responder a pergunta: por que
escolhem Bolsonaro?
“porque ele é o melhor preparado”, “porque ele é honesto”,
“porque ele vai acabar com a bandidagem”,“porque ele diz o que pensa sem medo”. Se você é um apoiador/a dele,
talvez (talvez mesmo porque não estou querendo colocar ideias na sua cabeça)
algumas dessas frases componham seu cabedal de justificativas. Antes de
continuar, sei que existem outras razões mas não teríamos espaço e quem viesse
a ler esse texto poderia achar enfadonha tanta listagem, por isso apenas estas.
Motivos para não o escolher também são vários e, atendendo a
proposta do texto, não listaremos aqui. Mais uma vez: este texto propõe, por
meio de algumas ideias filosóficas, entender as razões de algumas pessoas
escolherem o mencionado candidato causando, inclusive, muito espanto no ciclo
de amizades, locais de trabalho, grupos religiosos, barracas na praia, na rua,
na chuva, na fazenda... ou numa casinha de sapê (agora na sua mente a
musiquinha tocará hehehe).
Deixemos de coisa e cuidemos do texto.
ESCOLA DE FRANKFURT,
ADORNO E A ESCALA “F”
Comecemos com a Escola de Frankfurt. Nascida Instituto de
Pesquisa Social, a Escola reuniu pensadores como Max Horkheimer, Walter
Benjamim, Jurgen Habermas e Theodor Adorno. A partir das ideias de Kant, Marx e
Hegel e além deles foram desenvolvidas importantes reflexões sobre o mundo em
que viviam e que produziu o mundo em que nós vivemos. Muitas das ideias
frankfurtianas podem nos ajudar a entender nossos dilemas, nossas situações.
Para as finalidades desse texto, vamos voltar nossas
atenções para o pensador Theodor Adorno. Ele realizou uma pesquisa movido pela
tentativa de responder a uma pergunta mais ou menos essa: “Por que tantas
pessoas apoiaram o nazismo?” Mas tenha em mente que a interrogação de Adorno
foi mais ampla, uma vez que direcionou seu questionamento para o que
chamaríamos hoje de “cidadã/ão de bem”.
adorno
O que motiva o indivíduo “pacato”, cotidiano, aquele que
nunca antes na história de sua vida, de sua amizade, de seu relacionamento
afetivo-sexual-amoroso a gritar palavras de ordem violentas, que pedem morte
aos corruptos, morte aos degenerados e degeneradas sexuais, praticantes de
“abominações” e afins?
Se você se fez essa pergunta, Adorno a fez de maneira um
pouco diferente e noutros termos, afinal estava na primeira metade do século
XX, do século passado. As respostas que ele encontrou são, ao mesmo tempo,
perturbadoras e potencialmente libertadoras. Mas antes, um aviso:
ESTE TEXTO NÃO VISA
CONVENCER QUEM ESCOLHEU BOLSONARO PARA PRESIDENTE DA REPÚBLICA A “DESESCOLHER”,
TAMPOUCO OBJETIVA IMPEDIR OUTRAS PESSOAS DE ESCOLHEREM O CITADO CANDIDATO.
O OBJETIVO É OFERECER
PONTOS DE PARTIDA PARA PENSARMOS NOSSAS ESCOLHAS E AS ESCOLHAS DE OUTRAS
PESSOAS, O QUE É FUNDAMENTAL PARA EVITAR DARMOS “NOSSA OPINIÃO INTELIGENTE
SOBRE O BLOQUEIO A CUBA” (PARAFRASEANDO A CANÇÃO DE CAETANO E GIL). EXPERIMENTE
PENSAR.
Aviso dado, texto que
segue.
A PERSONALIDADE
AUTORITÁRIA: O QUE É
Vamos destrinchar: personalidade, na pesquisa de Adorno, é uma organização de forças mais ou menos
duradoura dentro do indivíduo (ADORNO, 1950). Forças nos motivam a agir ou
nos impedem de agir. Caracterizam-se, assim, pela possibilidade de determinar
nossas respostas ao que nos acontece nos ambientes em que estamos e diante das
situações que nos ocorrem.
Mas, é fundamental diferenciar personalidade de
comportamento. Os nossos comportamentos (formas de agir) são determinados pela
nossa personalidade, mas isso não quer dizer que é tipo um mecanismo
automático, que nossa personalidade é total atrelada às nossas ações. O que
acontece é que as forças de nossa personalidade são mais como um alerta para a
ação. É tipo a companhia elétrica de sua cidade ou o corpo de bombeiros que
ficam em estado de alerta, em prontidão para atender algum chamado.
Assim, quando agimos, expomos o que estava meio que “atrás
da porta”, de prontidão, em alerta, esperando a oportunidade para se lançar ao
mundo. A personalidade autoritária não quer dizer que somos todas fascistas,
ditatoriais, extremistas, que queremos as pessoas diferentes de nós, de nossas
ideias, em câmaras de gás ou mesmo em valas depois de levarem um tiro. Quer
dizer que temos um POTENCIAL de autoritarismo, quer dizer que somos POTENCIALMENTE
fascistas, quer dizer que, EM POTÊNCIA, todo mundo pode agir de tal maneira.
Aí você pode falar ou pensar: “que viagem, mermão!”,
“acredito nisso, não, que mané potencial fascista o quê?”, “tá dizendo que eu
vou mandar matar gente feito nazistas, é?”. A resposta a esses pensamentos é
única: todo mundo pode fazer isso, mas, entre poder fazer e fazer há uma
distância muito válida de ser entendida a partir da fala cotidiana: “todo mundo
é bom, a não ser quando não é”. Peço mais uma vez que abra seu coração e sua
mente para ENTENDER, em primeiro lugar, PENSAR SOBRE, em segundo e só depois
EXPRESSAR sua ideia.
É possível que alguém que leia este texto também esteja
pensando: “eu... eu... sou fascista?!”, “minha namorada é autoritária?”, “meu
pai?!!!”. Calma, jovem, retomando a ideia, é POTENCIALMENTE, logo, pode ser que
sim e pode ser que não, mas o que deve ser observado – inicialmente - é o
conjunto de atitudes que compõe a personalidade autoritária. São nove as
atitudes que a pesquisa de Adorno permitiu identificar e, a partir delas, vamos
levantar possibilidades de entendimento da escolha Bolsonaro.
AS NOVE ATITUDES DA
PERSONALIDADE AUTORITÁRIA
Essa parte vai ser quase divertida, vai lembrar quiz do
BuzzFeed, sendo que ao final pode trazer possíveis conclusões perturbadores
para alguns indivíduos. Há, a partir daqui uma possibilidade de
autoconhecimento válida para quem se propor a encarar o abismo de si que é, ao
mesmo tempo, social e psíquico. Comecemos então e vá marcando as atitudes que
porventura você identifique em si ou mesmo em outras pessoas que você conheça –
eleitoras ou não de Bolsonaro.
1. submissão
autoritária. Configura-se como submissão autoritária a atitude de seguir
fielmente um indivíduo, a pessoa que se crê grande guia e que pode resolver todos
os problemas que afetam todo mundo (ou todo “cidadão/ã de bem” – ainda que
conceitualmente seja difícil definir o que seja). A pessoa submissa, nesse
sentido, tende a amenizar aspectos contraditórios da liderança que segue,
justificando com frases tipo: “... mas também fizeram isso!” ou “... e o
pessoal contrário a ele/a, também faz e você não fala nada!” ou ainda: “também
não é assim desse jeito, foi modo de falar, ele/a não vai fazer assim”;
2. convencionalismo: convenções sociais são
fundamentais para a manutenção e reprodução da herança cultural de uma
sociedade, mas, no caso da personalidade autoritária, o que se identifica é uma
defesa exacerbada da chamada tradição.
Como a tradição representa, para
essas pessoas, tudo o que sempre se fez de um jeito e deu certo exatamente
desse jeito, qualquer alteração, qualquer mudança pode colocar em risco a
certeza que a pessoa nutre de que o mundo é imutável.
Essa defesa entrincheirada da tradição, esse apego arraigado
ao tradicional produz reações violentas – inclusive físicas – contra qualquer
mudança ou variação do que se convencionou. Exemplo prático: a defesa da ideia
de família tradicional, desconsiderando que os arranjos familiares são diversos
e atendem às necessidades de sobrevivência dos indivíduos. Famílias lideradas
pelas avós, pelas mães que foram abandonadas pelos pais de suas crianças são
exemplos de famílias que estão fora do padrão convencional e que são
alcunhadas de desajustadas por indivíduos de personalidade autoritária;
3. agressividade
autoritária: o convencionalismo citado acima tem relação direta com a
agressividade autoritária que se caracteriza pela reação contra grupos,
indivíduos, atitudes diferentes da sua. Qualquer “desvio” é prontamente
rechaçado. Além disso, personalidades autoritárias são controladoras, querem
saber tudo o que é feito por alguém e não é com o objetivo de cuidar
efetivamente, mas de controlar o que é feito, monitorar ações, saber de
pensamentos. Exemplo prático: saber o que foi feito durante o dia, desconfiar
de algo que não tenha sido dito que ia ser feito (mesmo que imprevistos
ocorram), querer saber com quem estava falando no whatsapp, quem é a pessoa que
curte sempre primeiro a foto que é postada, quem é que sempre comenta, as
razões de tal pessoa olhar de um jeito estranho e afins;
4. anti-intracepção:
personalidades autoritárias rechaçam qualquer possibilidade de
autoconhecimento, de lidar com emoções. Caracterizam-se por fazer piadinhas
sobre a sensibilidade alheia e, nesse caso, não é sobre gostar ou não de poesia
(apenas), mas alguém que se emociona diante de situações de violência ou que fica
triste por algum acontecimento cotidiano é prontamente ridicularizado.
Personalidades autoritárias tendem a se orgulhar excessivamente de sua suposta
racionalidade (que costumam exaltar reiteradamente). Exemplo prático: negar que
uma pessoa em estado depressivo precise de cuidados ou ainda, afirmar com
convicção que fazer terapia é “pagar para alguém ouvir você reclamar”. Também
afirmam que “se é pra pagar pra alguém me ouvir, eu vou para uma mesa de bar
porque lá pelo menos eu fico bêbado!”;
5.
projetividade/projeção: como personalidades autoritárias negam sentimentos,
principalmente os seus, elas tendem a projetar nas outras os aspectos sobre si
que elas não conseguem perceber – ou não querem. Seus desejos frustrados, suas
vontades reprimidas, pela perspectiva psicanalítica, inconscientemente dirigem
seus juízos de valor bem como suas ações. Exemplo prático: aquela pessoa que
aponta os “erros” alheios, que se coloca como guardiã da moral e dos bons
costumes e que, quando menos se espera, é pega se comportando exatamente da
mesma maneira que as pessoas que ela “reprovou”.
Exemplo prático 2: uma pessoa que passou uma vida inteira
criticando indivíduos homoafetivos e que, com o avanço da idade, “vira ‘gay’”.
Uma chave de leitura sobre essa situação é de que essa pessoa projetou a
frustração dela contra quem “assumiu” o que era. Quando finalmente a pessoa se
viu livre das obrigações sociais (muitas delas auto impostas), decidiu “se
assumir”, gerando os conhecidos comentários: “depois de velho/a, virou “gay”;
6. valorização do
poder e da força: uma personalidade autoritária tende a simplificar o mundo
em esquemas bipolares e, um que se destaca é a dicotomia fraco X forte. Por
isso valorizam a força pois o mundo, por essa perspectiva, pertenceria aos mais
fortes. Outro aspecto a considerar é que também afirmam que por terem sido
muito exigentes para consigo se tornaram o que são;
7. destruição e
cinismo: a valorização do poder e da força exposto acima vem acompanhada de
agressividades, de hostilidades em muitas situações. Personalidades
autoritárias têm dificuldades de lidar com oposições, mesmo as mínimas, aquelas
do cotidiano mais rotineiro (redundante de propósito) e, como se diz comumente,
“explodem por qualquer besteira”. Após a situação constrangedora e hostil,
pedem desculpas, perdão, mas, ainda assim, afirmam que foram provocadas, que a
vítima da explosão “também teve sua parcela de culpa”. Exemplo prático: a pessoa
que “explode” por causa de um atraso, aquela que “vira bicho” quando mexem nas
suas coisas ou que constrangem as outras em público, principalmente sendo chefe
da pessoa constrangida;
8. superstição e
estereotipia: personalidades autoritárias, geralmente, acreditam em
divindades e em divindades muito rígidas em relação aos códigos morais. A
divindade em que se crê teria um plano para a vida de cada um/a e tal plano é
imutável, irredutível. Considerando as atitudes 2, 5 e 6, também estereotipam
indivíduos e grupos a partir do que acreditam, de sua visão de mundo. Exemplo
prático: nenhuma mulher dirige bem, todo pobre é mal-educado, todo rico é
pirangueiro ou não tem amigos/as reais;
9. preocupação com a
vida sexual alheia: o último tópico das atitudes que compõem a
personalidade autoritária é muito comum. Daqueles senhores fofoqueiros,
passando pela tia que faz juízo de valor sobre o comprimento da saia,o discurso da liderança religiosa sobre as
“abominações”, é notória a vigia, a busca por controle, a normatização das
condutas afetivas, sexuais de quem não está no padrão heteronormativo. Uma
chave de leitura seria que essa preocupação tem relação com a frustração de ver
pessoas “se realizando” afetiva e sexualmente, enquanto há dificuldade em se
realizar (no caso a pessoa autoritária).
MARQUEI 9 DE 9! E
AGORA?
Chegamos no momento da leitura em que algumas pessoas podem
se perguntar o que fazer se atingiu a marca de nove atitudes. Pois bem, existem
algumas possibilidades, algumas chaves de leitura e elas são igualmente
perturbadoras e libertadoras. Agora é fundamental reiterar o aviso dado: não
pretende esse texto definir comportamentos, atitudes ou personalidades, mas
mostrar como o conhecimento filosófico pode nos auxiliar na jornada de uma
existência mais consciente do que nos acontece e mesmo do que sentimos e, por
extensão, do mundo ao nosso redor. Tudo isso marcado por contradições, algumas indissolúveis,
mas que é crucial lidar com elas.
Essas atitudes, na perspectiva de Adorno, são
potencialidades, o que quer dizer que podem vir ou não a tornarem-se atos,
ações efetivas. Lembra que mais acima foi mencionado como exemplo o corpo de
bombeiros, sempre de prontidão para atender à alguma ocorrência? Pronto,
mantenha essa metáfora, ela é fundamental. Essa prontidão pode ou não se
converter em expressão aberta, para tanto o contexto é um diferencial, além das
forças da personalidade que estejam, para usar um termo comum, “em alta” na
situação do momento.
É fundamental também ter em mente que a personalidade não é
imutável em suas características. O mundo em que estamos inseridas tem impacto
sobre nós, não estamos isoladas da chamada totalidade social. Em resumo, se
vivemos em sociedade, há uma via de mão dupla entre indivíduos e a própria
sociedade. Aqui é importante considerar um aspecto: tanto mais profunda será
essa influência da totalidade social sobre a personalidade quanto mais cedo
ocorrer esse contato. A infância é o ponto de partida, mas não como se fosse um
destino. É mais como um sinalizador, um tipo de GPS que guiaria os indivíduos
por caminhos que podem ser alterados dependendo do que se encontra no percurso.
As instituições sociais (família, educação, religião,
Estado) quando sofrem alterações, são relevantes para o tipo de personalidade
que se desenvolve coletiva e individualmente em uma sociedade. Não devemos,
porém, pensar que as instituições sociais são total influenciadoras, posto que
o que acontece é um agendamento mútuo, ou seja, as instituições influenciam e
são influenciadas. A partir daí segue a pergunta:
E O QUE ISSO TEM A
VER COM A ESCOLHA BOLSONARO?
Pois bem, comecemos problematizando uma afirmativa comum e
cotidiana: a política não é racional. Mas calma, entenda o que está escrito
antes de assumir a negativa. Existe um negócio chamado paixão, que pode ser
entendido como emoção e, muitas vezes, é entendida como um sentimento que pode
anteceder o amor. É relacionada com o descontrole, com ansiedade de estar com
alguém. Também é muito aproximada do desejo e do desejo sexual mesmo. Ainda que
válidos esses entendimentos, vamos ampliá-los e aplicá-los na possível resposta
de nossa questão.
Paixão é uma inclinação que se sobrepõe a outras inclinações
que temos e, ao se sobrepor, finda impedindo a decisão racional sobre como
agir. Essa é abordagem de Kant e que segue expondo a característica da paixão
de dominar nossa conduta, nossa personalidade. Ainda segundo o autor da Crítica
da Razão Prática, a paixão é como uma corrente que aprofunda o leito de um rio,
lenta e gradualmente, sendo também como uma intoxicação que precisa de um
remédio externo ou interno para ser combatida.
Partiremos de Kant, então. Sendo paixão uma inclinação que
se sobrepõe à outras inclinações, o ódio é uma paixão e quando se sobrepõe
devasta ou pode devastar tanto o indivíduo movido por ele quanto quem por ele
for atingido. Exemplo é o que não falta de como a paixão do ódio pode ser
devastadora. É importante ter em mente que não estamos tratando de emoção,
estamos tratando de paixão. A emoção é devastadora, toma conta mesmo da pessoa
e pode ser metaforizada com a embriaguez, que se atinge e passa deixando só a
dor de cabeça mesmo.
Paixão não. Ela mina o indivíduo, ela cerca a existência, é
como infiltração em terreno que vai fazendo tudo que está apoiado nele afundar
lentamente e de forma quase imperceptível. Difere da emoção porque esta passa e a paixão
fica por ali convivendo com outras paixões e em alguns momentos se sobrepondo,
como a prontidão mencionada mais acima sobre as forças da personalidade.
Se o ódio é uma paixão e paixões nos minam e impedem
decisões racionais, uma chave de leitura disso é que, identificando a paixão
que se sobrepõe em mim posso entender as decisões que tomei e tomo em minha
vida. São exemplos de paixões o medo, a (van)glória e a esperança. Se o medo é a
paixão que se sobressai, fazendo a observação de minha vida, notarei as várias
vezes em que tomei decisões a partir do medo de que algo acontecesse ou de que
não acontecesse ou de que algo que não sei o que é precisamente viesse a acontecer.
Segue o exemplo para as outras paixões.
Pensemos a partir das atitudes que compõem a personalidade
autoritária. Aquelas nove atitudes, podemos identificar nelas paixões
predominantes do medo e do ódio. Medo do autoconhecimento, medo do que não
conheço e temo conhecer porque talvez me deixe sem saber o que fazer diante de
um contato com pessoas, ideias, estilos e formas de vida que dividem o mundo
comigo e não consigo lidar com as emoções que parecem advir desse contato. Ódio
pelo que me contraria, pelo que não posso controlar, pelo que se rebela ao que
está instituído, ao que não se submete ao meu desejo de mando, de controle, de
dominação.
Uma chave de leitura da escolha Bolsonaro pode ser a de que
essa escolha está movida, paradoxalmente, pelo medo que paralisa, mas que
também leva a agir. Algo assim: temo o que ameaça (ou parece ameaçar) minha
forma de vida e não me movo em direção a algo novo (daí a fala de “volta
ditadura!” “intervenção militar, já!”) mas quero retornar aoque já conheço (que Bauman chamou de retrotopia). A dificuldade de lidar com
sentimentos conflitantes – muitas vezes paradoxais – insufla o ódio, que pode
me impulsionar para agir fisicamente extinguindo o que odeio ou me submetendo a
quem acredito que fará isso por mim (lembrando do tópico 1 das atitudes que
compõem a personalidade autoritária).
A partir de 2014 houve o que alguns especialistas chamam de
“radicalização da democracia” no Brasil: atitudes mais conservadoras se
transmutaram em reacionarismo (este se caracteriza pelo uso da violência – ou a
propensão a – para impedir mudanças ou situações que afetem sua forma de vida.
O conservadorismo diz respeito à manutenção da ordem, do que já se conhece, da
chamada tradição) e ganharam as ruas, o que não é necessariamente ruim,
considerando que a diversidade de ideias, de ideologias é fundamental para o
aperfeiçoamento do próprio regime democrático. O que se deve prestar atenção é
o que esse reacionarismo produziu, criou ou, se quiser a metáfora mitológica,
qual foi o Kraken que foi liberto.
Nesse sentido, cabe a percepção das questões sociais:
ampliação das desigualdades, das formas de exclusão, das violências
institucionais que não são resolvidas prontamente. Diante de um contexto em que
as autoridades, aquelas que deveriam administrar o Estado objetivando proporcionar
segurança para a população não o fazem, a saída parece ser sempre extrema ou
deve ser extrema. Mas essa radicalidade está ligada às paixões e como as
paixões se relacionam com as atitudes que compõem a personalidade autoritária e
todo mundo é potencialmente autoritário, então podemos entender esse avanço da
escolha Bolsonaro como a inclinação ao ódio e ao medo como paixões predominando
na vida política.
Some isso ao que defendeu Erick Fromm em seu O medo à liberdade: muitas vezes renunciamos
à liberdade e nos lançamos rumo ao medo porque nos sentimos impotentes e
angustiados diante das decisões que temos que tomar. Sendo as decisões motivadas
pela paixão a qual nos inclinamos, a segurança do medo é maior que a angústia da
liberdade positiva, aquela que se caracteriza pelo desenvolvimento de
potencialidades intelectuais, emocionais, sensoriais etc. e que chama para si a
responsabilização pelo que acontece.
Se o autoritarismo, para ser aceito e reproduzido nas instâncias
da chamada “política oficial”, precisa de uma base grande, massificada mesmo,
até para ter sucesso enquanto movimento político, ele precisa não apenas da
submissão autoritária, mas da cooperação ativa da maioria da população. Como se
consegue isso? Através do potencial antidemocrático que todas nós carregamos.
Uma chave possível de entendimento é que a constituição da
sociedade brasileira, historicamente, foi antidemocrática, logo, temos terreno
fértil para ideias que são, essencialmente, antidemocráticas crescerem e
prosperarem. A nossa sociedade é, também, historicamente racista, machista,
misógina, em suma, excludente e reprodutora de desigualdades materiais e
sociais e encontrou na escolha Bolsonaro o catalisador desse ódio, dessa paixão
que minou a história do Brasil desde os idos do século XVI. Pense da seguinte
maneira: uma bola muito cheia e que se precisa tirar dela esse ar, mas para
tirar esse ar só é possível através de um “pito” que fará o ar sair. A escolha
Bolsonaro é o “pito” através do qual essas personalidades autoritárias podem se
realizar, extravasar a paixão tanto do medo quanto do ódio.
A escolha Bolsonaro não está amparada em desconhecimento da
história do Brasil, analfabetismo político (lembrando Brecht) ou fruto da
alienação engendrada por meios de comunicação conservadores. Essa escolha
tampouco é burrice. Essa escolha é a confirmação de uma forma de vida baseada
no medo e no ódio (no sentido citado no texto e não totalmente no sentido do
senso comum) enquanto paixões que nos minam e impedem o exercício da escolha
racional (no sentido kantiano da autonomia, da maioridade no pensar).
Assim, podemos entender as razões que levam alguém a manter
sua escolha, mesmo diante de argumentos racionais que demonstrem a fragilidade
do candidato no que diz respeito a aspectos fundamentais para gerir um Estado
democrático: essa escolha é movida pela paixão (mais uma vez, no sentido
filosófico abordado nesse texto). Para lidar com essas paixões (medo e ódio) pouco
vai adiantar “chamar a pessoa para a razão” (como se diz no popular). Paixões são
indestrutíveis, apenas se sobrepõem umas em relação às outras, logo, deve-se
buscar paixões que se sobreponham ao medo e ao ódio sem, no entanto, deixar de
lado os mecanismos racionais que possibilitem reprimir as ações movidas por
essas paixões (o medo e o ódio), uma vez que causam danos reais a indivíduos e
grupos.
O Brasil é um país estruturalmente autoritário e
considerando a relação entre a estrutura social e o habitus (segundo Pierre Bourdieu), todo indivíduo que faça parte
dessa sociedade vivenciou sua constituição enquanto sujeito marcada por
autoritarismo e violências. Um importante passo é entender as atitudes que compõem
a personalidade autoritária e identificar as paixões (ódio e medo) no que
motiva nossas ações e escolhas.
Se, mesmo diante dessa possibilidade de pensar sobre o que
nos motiva e impulsiona e identificando em nós mesmas esse autoritarismo –
latente ou explícito – ainda assim negarmos o enfrentamento dessas paixões que
causam danos individuais e coletivos, é mais coerente (e saudável
psiquicamente) se despir da máscara de “cidadão/ã de bem” (conceito difícil de
elaborar claramente) e assumir a intolerância que nos compõe e o ódio que
propagamos em nome de um medo travestido falsamente de coragem "de falar o que pensa" que é muito mais
revelador da covardia de se autoconhecer e reconhecer nossas limitações
enquanto humanidade.
Como foi escrito lá em cima, o objetivo do texto é fornecer
subsídios para pensar o que motiva a escolha Bolsonaro. Como
afirmam que Sócrates afirmou: uma vida sem reflexão não vale a pena ser vivida.
Experimente pensar.
Freud, ao pensar a civilização como
aquilo que diferencia o ser humano dos outros animais - não fazendo distinção,
portanto, entre civilização e cultura - afirma que o mal-estar é uma realidade
inevitável de todo indivíduo que vive em sociedade. A vida social implicaria,
para ele, uma série de proibições repressoras de instintos e desejos naturais. Pensando
a partir da perspectiva da própria vida em sociedade e das contradições que ela
produz, sobretudo na era da superexposição que a revolução tecnológica
proporcionou, é possível estabelecer uma relação entre uma vazão excessiva de
pulsões relacionadas à violência, e até mesmo a um certo grau de sadismo, e a
construção de discursos sociais que naturalizam ações violentas.
Para estabelecer essa relação é
fundamental, ainda, a compreensão do indivíduo a partir dos elementos sociais
que o constituem. Um dos aspectos que definem o
caráter humano é a capacidade de pensamento, ou como diz Gilberto Gil na letra
da música, “pensamento, mesmo, fundamento singular do ser humano”. Mas foi a
partir do momento que o homo sapiens
começou a refletir sobre a realidade ao seu redor, ou seja, a partir do momento
em que o homem foi capaz de atribuir significação
simbólica à sua realidade, e a comunicar essa significação a outros, que a
nossa espécie abandonou o reino da natureza e passou a viver o mundo da cultura.
No entanto, essa significação e sua comunicação só é possível através de um
conjunto de símbolos, e a esse conjunto de símbolos damos o nome de linguagem.
O conhecimento humano, portanto, nada mais é do que uma construção de sentidos
que só é possível através da linguagem. Nessa perspectiva, a linguagem faz
parte da estruturação do indivíduo enquanto sujeito, uma vez que só podemos
construir qualquer significação sobre qualquer coisa a partir do momento que
damos um nome a essa coisa, ou ainda, como pensou o linguísta Benjamin Lee
Whorf, “a
linguagem não é apenas o modo como uma pessoa se comunica, mas como constrói a
casa da sua consciência”.
No entanto, as sociedades humanas são mediadas
por relações de poder, seja o poder no âmbito no macrofísico, ou nas relações
de dominação que se estabelecem no âmbito do microfísico, observadas e
teorizadas por Foucault. Assim, pode-se pensar que quem detém os meios de
construir e disseminar discursos, ou seja, quem domina a produção da linguagem,
detém poder. Somando-se isso à capacidade de disseminação em massa de
informação de forma muito rápida e à mercantilização que o Capitalismo estendeu
a todos os elementos da vida social, o resultado foi um fenômeno que prejudica
a assimilação crítica e a reflexão autônoma acerca dos fatos do cotidiano: a
espetacularização do senso comum.
Sociologicamente, o espetáculo consiste em um
conjunto de relações sociais mediadas pela construção de sentimentos a partir da apresentação
espetacularizada e ilusória de algo. Associa-se esse conceito, geralmente, à
produção de imagens, no entanto, também no âmbito dos discursos ocorre a
produção de espetáculos. Dessa forma, os discursos sociais assumem também uma
característica mercadológica, na medida em que buscam “vender” uma ideia, ou
ainda, um modo específico de entendimento da sociedade, da política, das leis,
etc. A partir daí, ganham visibilidade e repercurssão os discursos do senso
comum, que passam a aparecer de forma espetacularizada através de comentários
em redes sociais, de videos compartilhados nas mídias e de postagens que são
exibidas de forma polemizada e repetidamente compartilhadas e curtidas. Conceitua-se
senso comum como uma forma de entendimento da realidade que, diferentemente do
senso crítico, se baseia em uma percepção superficial e imediatista, dispensando
a reflexão aprofundada, não se preocupando com o rigor lógico e conceitual das
ideias emitidas. Considerando, ainda, que o aumento progressivo da
disponibilização de informações não implicou o aumento da capacidade humana de
assimilar qualitativamente essas informações, é estimulada uma percepção
parcial das informações cotidianas. A partir disso, passou a permear na vida
social, e mais fortemente nas redes sociais, a legitimação de ideias baseadas
no senso comum para tratar de questões sociais e políticas complexas. Desse
modo, não é preciso nenhuma reflexão crítica, estudo ou análise intelectual
porque se convencionou a emissão de opinião baseada em achismos e em
reducionismos simplistas.
Nesse sentido, o conceito de Indústria Cultural, criado por Adorno e
Horkheimer, auxilia o entendimento da repercurssão exarcebada que o uso do
senso comum vem tendo nos espaços sociais, sobretudo nas mídias virtuais, pois
evidencia o aspecto de mercadoria da produção de pensamentos. É preciso que as
ideias sejam “vendáveis” para que possam ser consumidas de forma massificada e
rápida, o que implica a necessidade de tornar as ideias facilmente assimiláveis
a partir da retirada de qualquer caráter crítico e questionador. Como
consequência, o senso comum, apresentado como espetáculo para ser consumido,
não é informativo, mas um conjunto de raciocícios rasos e intelectualmente
problemáticos – quando não simplesmente absurdos – transmitidos para serem
reproduzidos de forma passiva, muitas vezes a partir de palavras de ordem e de
trocadilhos de memorização fácil.
É essa a lógica discursiva que
fabricou o discurso de ódio que permeia praticamente todas as esferas da vida
em sociedade - e que serve inclusive a políticos que constróem sua popularidade
em cima dele – e transforma ações violentas em elementos cotidiados
banalizados. É este, então, o ponto central da reflexão desse texto: a construção do discurso de ódio, a partir
do uso do senso comum, como instrumento ideológico que legitima o uso da
violência. É fundamental, para entender os acontecimentos polêmicos
recentes envolvendo discurso de ódio e política - que foram desde parlamentares
incitando mais massacres em prisões, passando por homenagens em rede nacional a
estupradores sociopatas e por chamadas para “metralhar a petralhada”, até a
tentativa de assassinato de candidatos à presidência da república – o uso do
discurso de combate a um suposto “mal social” na construção do sentimento de
ódio para justificar a retirada de direitos, a repressão total e até mesmo a
execução de pessoas ou grupos sociais politicamente distoantes.
O que se observa, a partir dessa
lógica, é a busca pela sensação de prazer proporcionada pela aplicação de
“castigos” com requintes de crueldade, pelo linchamento exibido de forma
espetacularizada e pela fetichização da tortura, por meio da transferência do
poder de aplicação de punição do Estado para qualquer um que se disponha a
aplicá-la em nome do chamado cidadão de bem. O discurso de ódio expressa o
desejo de que, entre a acusação da prática um crime e a aplicação de uma
punição o mais violenta possível, estejam dispensadas quaisquer garantias
legais, uma vez que as mesmas tornam-se meras inconveniências para quem deseja
satisfazer o desejo imediatista de vingança pessoal. Não é mais necessário se
reunir em um coliseum para assistir ao espetáculo da violência contra
indivíduos rotulados como barbáros, ou se deslocar para apreciar a morte na
fogueira de indivíduos considerados subversivos, basta assistir à tortura
punitivista pela tela do smarthphone.
Todavia, o que o reducionismo
simplista do senso comum que está na base do discurso de ódio distorce é a
percepção de que, por desconsiderar a profundidade das causas dos problemas
estruturais da sociedade brasileira, já que recusa o uso da reflexão crítica,
dá apenas uma ilusão de solução, tendo na prática o efeito contrário. Para além
de uma concepção maniqueísta de Justiça social, sociedades que se pretendem
democráticas só encontram as soluções para os seus problemas na radicalização
da própria prática democrática. Qualquer alternativa que se baseie no discurso
de que é necessário “tomar medidas antidemocráticas para salvar a democracia”
vai sempre tender a um totalitarismo que só serve para alimentar o próprio
sistema, sistema esse que lucra com a violência que se abate sobre todos – sobre
uns mais do que sobre outros, mais ainda assim, que atinge a todos em alguma
medida. No final das contas, retornando a Freud, a sensação de satisfação das
pulsões sádicas mais reprimidas em prol da existência da Civilização é sempre
efêmera, e até mesmo os maiores disseminadores do discurso de ódio acabam sendo
engolidos pelas contradições do discurso que defendem. ======================================= Thais Almeida, graduanda de História e monitora do curso Pense Fora da Caixa - Filosofia e Sociologia para o ENEM
Pensar com a sociologia (bauman) implica observar o mundo ao redor e atravessar o olhar para além do que a vista alcança. É aplicar conceitos sociológicos para desnaturalizar e estranhar a aparente ordem social.
Uma forma de pensar o racismo é através do conceito de estrutura social. O Esquema Monstro mostra isso: de uma definição de estrutura social e os fatores que a compõem podemos entender como o racismo é estrutural na sociedade brasileira, o que serve para ampliar as possibilidades de intervenção, uma vez que se deixa de lado o racismo como forma de exclusão social praticada por indivíduos mas sim como parte de uma estrutura que se fundamenta nessa forma de exclusão cujos indivíduos são agentes de reprodução de algo maior e histórico.
- Caracteriza-se como inversão da realidade o entendimento
do que acontece socialmente que inverte a relação entre causas e consequências.
Considerando ideologia como o conjunto de ideias que compõem nossas formas de
pensar, de sentir e de agir – individual e coletivamente -, ocorre a inversão
quando a origem da realidade é entendida como produto (valendo também o
contrário).
- exemplo: quando se trata da questão agrária no Brasil e se
afirma que é por causa da ação do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra que
aumenta a violência no campo. A inversão ocorre porque o acúmulo de latifúndios
sem função social é produtora de violência, quando reduz a possibilidade de
usufruto do direito à terra e à moradia – estabelecendo uma forma de violência
contra a dignidade humana.
- agora é com você: observe o mundo ao seu redor e tente
identificar as várias situações em que ocorre a inversão da realidade. Pode ser
tenso e ao mesmo tempo divertido e libertador.
“Cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é “. Será?
Colocar em dúvida o trecho da canção Dom de iludir, imortal na voz de Caetano
Veloso, causa estranhamento. Se observarmos ao redor e prestarmos atenção nas
conversas de muitas pessoas, esse pretenso saber de si é repetido muitas vezes
em frases como:
- (…) porque eu sou assim...
- (…) ah, meu filho, eu me conheço...
- (…) aaaah, se fosse comigo ia ver,
porque eu sei como eu sou e...
Mas, se pudéssemos averiguar a vida
dessas pessoas que tão fortemente esbravejam esse autoconhecimento, talvez
(talvez mesmo?) nos decepcionássemos com as contradições apresentadas.
Quem falou que “mandaria a esposa embora”,
não mandou; quem esbravejou que “chutaria o balde e pediria demissão do emprego”,
continuou empregado e quem disse que “tocaria o terror” ficou foi intocada num
canto escondida e aterrorizada.
Se pudéssemos nos aproximar dessas
pessoas nessas situações e lembra-las do que disseram antes, é quase certo que ouviríamos
uma outra frase célebre:
- Ah, mas aqui foi diferente!
Ou a pessoa inquirida seria acometida
pela terrível e maldosa amnésia de ocasião, também chamada de “dando o perdido”,
“se fazendo de besta” ou “fazendo o ‘migué’”. Terrível mal essa amnésia de ocasião.
Pois bem, cuidemos da vida e adiantemos a leitura.
Alguém vai gritar que é hipocrisia, que essas
pessoas são hipócritas como todas as pessoas na terra. Hipocrisia pode ser
entendida como a ação que é contrária ao que se fala.
Hipócrita é a pessoa que diz uma coisa e
faz outra. Por essa perspectiva, seu pai, sua mãe e outros adultos seriam todos
hipócritas quando repetem a frase: “faça o que eu digo, mas não faça o que eu
faço!” (poderíamos complementar: “quando nem eu faço o que eu falo!”), em
situações do tipo quando mandaram você dizer para o amigo de seu pai que ele não
está em casa, estando.
A hipocrisia também é parte de reflexões
filosóficas, mas que não trataremos aqui, por enquanto vamos utilizar essa
ideia para abordar a questão do autoconhecimento e suas possibilidades.
Com certeza todos conhecemos pessoas que
agem assim, mas, sabemos que também agimos assim? Ou, mais intenso ainda:
aceitamos que também agimos assim?
Pois bem, aqui cabe outro questionamento:
sua vida está sendo bem vivida? Mas não responda com os clichês básicos e eternos,
repetidos aos quatro ventos. Não quero respostas tipo:
- Sim, tenho saúde e paz, o resto eu vou
atrás!
- Com a graça de Deus e como Ele bem
permitir!
No caso desta última, não estou negando o
poder ou a existência de deus ou de quaisquer divindades, apenas peço que
afaste esses elementos cotidianos e superficiais que usamos quando nos
perguntam sobre a qualidade da vida que temos.
COM VOCÊS, SÓCRATES!
Aqui temos Sócrates, divisor de águas na
história da filosofia, que reivindicou a importância da vida refletida, da vida
inquirida, da vida problematizada. Mas não são questionamentos rasos, são perguntas
basilares para que nos sejam expostas as aparências do mundo que são colocadas
como substitutas do que as coisas são.
Seria algo assim: pense numa grande cortina
que estivesse sobre todo o mundo e sobre o que tem nele. Essa grande cortina,
entretanto, não embaça a sua vista de forma efetiva, mas cria imagens que ficam
por cima do que está no mundo.
Como toda cortina, expõe uma parte do que
está do lado de fora. Pode ser que, por curiosidade, espiaremos ou ignoraremos.
Em nível hard, abriremos a cortina e
deixaremos a luz entrar.
A questão é que o que está do lado de fora
pode não ser o que pensávamos – isto seria a estampa da cortina. Pense assim: a
ideia que temos de justiça pode não ser, efetivamente, justa, mas o que foi
estampado na cortina e, o que foi pintado, corresponde ao que acreditamos ser a
realidade.
Agora estenda essa ideia de cortina para
você. Se nós estamos no mundo e tudo o que há no mundo está coberto pela
cortina estampada, então nós também nos vemos por essa estampa na cortina. Isso
quer dizer que o pretenso autoconhecimento também é um autoconhecimento que
está ligado – e muito – ao que é aparente, ou seja, superficial.
Daí a dificuldade de percebermos as
contradições entre o que pensamos, falamos e o que fazemos, as nossas atitudes.
É quando gritamos hipocrisia apontando para as outras pessoas e as outras
pessoas apontam para nós e umas contra as outras. Há, então, não uma hipocrisia
generalizada, mas uma percepção aparente e generalizada sobre quem se é.
Pelo método de Sócrates, temos que
problematizar essa percepção, questioná-la. Arregaçar a cortina para enxergar o
que está do lado de fora, no caso, dentro de nós. Importante ter em mente que,
da mesma forma que as ideias, quando questionadas, podem revelar equívocos e
interesses que entram em conflito com o que pensamos, o que podemos descobrir
sobre nós pode – e geralmente é – desagradável.
Como tendemos a fugir do que não é
prazeroso, não queremos saber, ter contato com que essas verdades sobre nós. Mas
elas não só estarão lá como seguirão arranhando a parede que as prende, a parede
que as cerca e impede de sair.
COM VOCÊS, JUNG
Aqui aproximamos Sócrates de C. G. Jung e
o que este designou como sombra. Podemos conceituar, de forma introdutória,
sombra como sendo aqueles aspectos de quem somos, de nossa personalidade que
estão, por assim dizer, escondidos de nós, no nosso inconsciente – para usar um
termo mais técnico. Essa sombra não é ruim, tampouco deve ser entendida como
boa, mas pode ser entendida como potencialidade e, como toda potencialidade,
pode expor muita coisa.
Sabe aquela sabedoria popular que afirma
que todo mundo tem um lado ruim? Pronto, vamos pensar a sombra a partir dessa perspectiva,
mas vamos entender esse lado ruim fora da dicotomia bem X mal. Esse lado ruim
seria o que está oculto e está oculto por ser desfavorável de alguma forma para
nós. Pense da seguinte maneira: durante a história da sua vida você foi
educada/o de maneira a se comportar mais de uma forma e foi levada/o a reprimir
outra, considerada ruim. O que foi reprimido não sumiu, mas foi “trancado” no
porão, no caso, no inconsciente.
Pense que consciente e inconsciente são
um par e sendo um par atuam (ou deveriam atuar) juntos, o que não acontece de
maneira plena. Se colocamos aspectos de nossa personalidade no “porão”, esses
aspectos compõem o que somos e vão buscar a saída, uma espécie de reconciliação,
uma retomada da dança que foi interrompida em algum momento.
A frase “eu sou assim”, a partir da perspectiva
de Jung, deve ser entendida como “eu me mostro assim”, ou seja, é como se fosse
uma máscara (persona) que forma a nossa personalidade para que possamos viver
no mundo resistindo ao que nos faz sofrer e convivendo com as outras pessoas. A
questão, porém, vai além da proteção contra o mundo no que ele tem de ofensivo
ou do que é necessário para viver nele.
Essa máscara (persona, personalidade) nos
esconde nossa sombra e, vez ou outra, (muitas vezes) essa indesejada meio que “empurra
a porta” nos mostrando o que queremos esconder, o que temos vergonha e mesmo
medo de admitir. Talvez aquela “bad” que nos toma seja essa sombra “vazando”
pelas brechas do inconsciente na direção da luz, do consciente.
E COMO ISSO
ACONTECE?
Sabe quando você tentou se relacionar com
alguém, mas nunca conseguiu, sempre deu errado, você tem o famigerado “dedo
podre”, só aponta para o ruim, para o que não presta? É provável que sua fúria
tenha se voltado para as pessoas que foram ruins com você. Pois bem, essas suas
escolhas podem ser parte de sua sombra “vazando”.
Essas escolhas, quase idênticas, compõem
um padrão. Se você é conhecido pelas suas amizades pela sua incrível capacidade
de escolher um mesmo tipo de relacionamento, o abusivo, pense que há algo que sua
sombra está tentando comunicar. Uma verdade ocultada, algo sobre merecer amar e
ser amada/o e que pode ter a ver com algum momento de sua jornada ou fazer
parte de algum aspecto de sua personalidade.
E quando tem aquela pessoa que você detesta
desde que conheceu, aquela que irrita você quando fala, quando sorri, quando
anda, quando existe, já parou para pensar na razão de tamanha ojeriza? Essas sensações,
esses sentimentos que temos por alguém são muito mais reveladores do que somos,
do que sentimos do que sobre o que a pessoa é, afinal a pessoa não é
responsável sobre o que você sente, ela só pode ser responsável pelo que ela é.
Em situações como essa, a sombra
contribui para você como um espelho contribui para quem quer ajeitar o bigode,
retirar a maquiagem, escovar o dentes: nos mostra algo que pode melhorar a
nossa aparência, sendo que nesse caso não seria a aparência em termos estéticos,
mas aquilo que aparentamos para nós mesmos para encobrir o que nos envergonha, o
que não queremos reconhecer que exista ou que também somos assim.
Talvez você pense que às vezes uma raiva
de alguém é apenas uma raiva de alguém e não tem grande verdade para ser
revelada sobre isso. Há verdade nisso também, mas pense que mesmo essa raiva
diz respeito ao que VOCÊ sente ou sentiu por algo que outra criatura realizou,
disse, expressou. Mais uma vez volta-se para você. Pense mais: o que é dito, o
que é feito não tem significado em si, mas se relaciona a algo que contribui
para a construção de sentido de quem observa, escuta ou sofre a ação.
O QUE FAZER
Aí você afirma: “então eu só preciso
assumir que tenho ‘defeitos’ e pronto, equilibrei tudo!” Calma, jovem, não
funciona assim – ainda bem que não. Encarar a sombra não é um processo apenas
racional (não mesmo). Não se encara o que se é para negar, confrontar e
destruir, mesmo porque não se consegue destruir o que se é. Muito menos para
ser “legal”, complacente, algo tipo “bichinho/a de mim que sou tão terrível”. Longe
disso.
Entrar em contato com a sombra que somos pode
ampliar a luz que temos sem que haja ofuscamento nem apagão, mas um equilíbrio claro/escuro
que integrará qualidades importantíssimas na realização efetiva de quem se é. Não
se viverá sem sofrimentos, mas se terá mais coragem e alegria para passar pelas
atribulações e encarar o que o poeta tão bem definiu como “a pena de viver”.
Assim, trocar a atitude de responsabilizar
o mundo pelo que acontece por uma atitude de busca pela própria contribuição
individual que se dá para o que há no mundo, é um bom primeiro passo.
A pergunta a se fazer é: o que me leva a
essas situações? Por que esses acontecimentos se repetem? Por que eu permito
que essas pessoas entrem na minha vida e façam tudo o que fazem? Por que essa
pessoa me incomoda tanto? Por que essa presença me inquieta? Por que toda vez
que tal coisa é dita eu me sinto assim (ou assado?)
Aqui cabe ilustrar com um clássico do
cancioneiro nacional na voz de Raimundo, o Fagner e do Baleiro Zeca:
Seguem as letras:
À Flor da Pele
Ando tão à flor da
pele,
Que qualquer beijo
de novela me faz chorar,
Ando tão à flor da
pele,
Que teu olhar flor
na janela me faz morrer,
Ando tão à flor da
pele,
Que meu desejo se
confunde
Com a vontade de não
ser,
Ando tão à flor da
pele,
Que a minha pele tem
o fogo do juízo fina
Um barco sem porto,
Sem rumo,
Sem vela,
Cavalo sem sela,
Um bicho solto,
Um cão sem dono,
Um menino,
Um bandido,
Às vezes me preservo
noutras suicido.
Ando tão à flor da
pele,
Que qualquer beijo
de novela me faz chorar,
Ando tão à flor da
pele,
Que teu olhar flor
na janela me faz morrer,
Ando tão à flor da
pele,
Que meu desejo se
confunde
Com a vontade de não
ser,
Ando tão à flor da
pele,
Que a minha pele tem
o fogo do juízo final
Um barco sem porto,
Sem rumo,
Sem vela,
Cavalo sem sela,
Um bicho solto,
Um cão sem dono,
Um menino,
Um bandido,
Às vezes me preservo
noutras suicido
Oh sim eu estou tão
cansado,
Mas não pra dizer,
Que não acredito
mais em você
Eu não preciso de
muito dinheiro,
Graças a Deus
Mas vou tomar aquele
velho navio,
Aquele velho navio..
Revelação
Um dia vestido de
saudade viva
Faz ressuscitar
Casas mal vividas,
camas repartidas
Faz se revelar
Quando a gente tenta
de toda maneira dele se guardar
Sentimento ilhado,
morto, amordaçado
Volta a incomodar
Quando a gente tenta
de toda maneira dele se guardar
Sentimento ilhado,
morto, amordaçado
Volta a incomodar
Quando a gente tenta
de toda maneira dele se guardar
Sentimento ilhado,
morto, amordaçado
Volta a incomodar
Quando a gente tenta
de toda maneira dele se guardar
Sentimento ilhado,
morto, amordaçado
Volta a incomodar
Volta a incomodar
Volta a incomodar
Quem nunca se sentiu “à flor da pele”? Qualquer
coisa que aconteça é recebida com muita intensidade, desde um bom dia de alguém,
passando pela desarrumação da casa até chegar ao vento que irrita simplesmente
porque está ventando.
Uma espécie de desorientação, incerteza,
insegurança de não se sabe o quê nos ajudam a ter uma chave de leitura para a
canção e que pode se aproximar desse “grito silencioso” da sombra que temos e
que quer “encontrar a luz”.
Tentar “se guardar”, ilhar o sentimento
apenas traz uma falsa sensação de bem-estar, deixar de lado o que incomoda não
é lidar com o que incomoda, mas sim não encarar o abismo que se é e que tem um
grande olhar no fundo, esperando para nos encarar e nos fazer ver o feio e o
belo que somos em uma perspectiva que ultrapassa a estética, dizendo respeito
ao mal que somos e ao bem que também nos é.
Aqui é muito importante ter em mente que
o mal de que se trata não é o mal caricato de filmes e telenovelas, é o mal
ancestral, aquele que faz parte da história, quando não se negava, mas
buscava-se a convivência equilibrada que garantisse a manutenção da vida.
Pare e pense: se todo mundo é mal, mas todo
mundo é bom (porque diz que os outros é que são ruins), quem é, verdadeiramente
a vítima desse mal? Tenso, né? O mal do mundo é o resultado da soma do mal de
cada um. Enquanto negarmos isso, seguiremos sofrendo e fazendo sofrer quem
afirmamos amar acima de tudo.
Retomo as questões: o que me leva a essas
situações? Por que esses acontecimentos se repetem? Por que eu permito que
essas pessoas entrem na minha vida e façam tudo o que fazem? Por que essa
pessoa me incomoda tanto? Por que essa presença me inquieta? Por que toda vez
que tal coisa é dita eu me sinto assim (ou assado?)? O que é essa sensação de
desalinho com a minha vida, com as pessoas que eu creio amar?
As respostas, se procuradas no porão em
que foram jogados aspectos considerados ruins, nocivos e mesmo temores e
fragilidades infundados ou fruto de situações dolorosas, estarão na sombra e na
aceitação ativa e não complacente do mal que também há em nós.
Deixaremos de culpar “o dedo podre” nas
escolhas amorosas, entenderemos que o chefe não é apenas mandão e assim
sucessivamente.
Não somos bons nem maus essencialmente. Somos
potencialidades que carregam a ambiguidade do existir. Afirmar que tudo é culpa
do ego é uma solução rasa e que não dá conta dos caminhos quase infinitos pelos
quais podemos trilhar, se embarcarmos na viagem fantástica do autoconhecimento.
Não será fácil, será doloroso, mas com certeza nos engrandecerá e tornará nossa
vida mais consciente e, por extensão, mais nossa.